quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Desbotou

Eu chego ao meu quarto. Visto aquele vestido novo, bonito, ainda cheirando a roupa nova. Passo as mãos devagar ao longo do corpo para desamassar as marcas que ainda tinham ficado da sacola. Dou algumas voltas na frente do espelho, desamasso mais um pouquinho na ponta. Coloco meu batom vermelho escuro, quase um bordô, combinando com o vestido. Passo ele bem devagar, cuidando para não borrar. O batom desliza tão facilmente pela minha boca deixando uma cor forte. Entre esse meio tempo, dou uma olhada no meu celular, nenhuma chamada, como eu sabia, apesar de ter um pouquinho de esperança. Volto ao espelho, espalho o batom forçando e movendo o lábio superior conta o inferior, de modo tradicional. Pego aquele lápis bem preto e passo no contorno dos olhos, depois o rímel, fazendo os meus cílios ficarem bem curvos. Penteio meu cabelo começando pelas pontas, para desembaraçá-las, depois, a escova corre com uma facilidade pelos meus fios pretos e lisos. Prendo a camada de cima com um coque, o resto deixo solto. Sei lá, não fico bem com o cabelo totalmente preso. E pelo visto, acho que ele também não gosta. Calço meus sapatos pretos de salto alto, ponho os brincos que jamais tirei daquela caixa empoeirada e os coloco. O colar, a mesma coisa. Acho que já estou pronta, eu pensei. Então, meu celular toca bem rapidinho, som de mensagem. Vou correndo até ele, “me atrasarei quinze minutos”. Tudo bem, eu pensei. Podia ter tomado um banho mais longo, pelo menos agora tenho tempo para alimentar os gatos. Teria dado tempo para alimentar os filhotes da gata mais velha, que ainda não tinham nascido. Pois é, ele demorou mais do que quinze minutos. Enquanto isso, eu batia meu pé agoniadamente sentada no sofá. Olhava para o relógio de cinco em cinco minutos, ou segundos. Até que eu ouvi uma buzina, que, ridiculamente parecia apressada e pedia pressa. Já fiquei com uma ponta de raiva. Olhei pela janela, era ele.Saí com calma, fechei a porta da casa com toda a calma do mundo. Entrei dentro do carro. Nos beijamos, o que fez borrar todo o meu batom. Ele estava quase ligando o carro. “Esqueci minha bolsa.”“Ah, meu bem! Não precisa de bolsa, que coisa!”“Espere aí, vou pega-la.”“Mas, você já está linda assim, a bolsa só vai atrapalhar.”“Eu quero o que tem dentro da bolsa.”“Não precisa. Eu tenho dinheiro aqui. Já estamos atrasados e não quero me atrasar mais ainda. Temos reserva no restaurante para as 20h e agora já são 19h50min. E não acredito que você vai voltar para pegar a bolsa! E como você esquece se é tão importante?”“Meu Deus do céu, nesse meio tempo eu já podia ter ido e voltado. Espere aí.”Bati a porta do carro com força. O que me deu mais raiva é que o vestido que eu demorei tanto para desamassar tinha puxado fio quando engatou no cinto de segurança. Demorei tanto tempo para me arrumar, e agora, ele já tinha feito meu batom borrar, meu vestido não ficar tão impecável quanto antes e provavelmente eu já estava suada de raiva. Raiva acumulada desde a hora dos “quinze minutos”. Entrei em casa, peguei a bolsa e voltei. Entrei no carro prometendo pra mim mesma ter um pouco de paciência e tentar amenizar a minha raiva, para não brigarmos... De novo.“Está tudo aí agora?”“Claro, podemos ir.”Fomos até o restaurante sem falar uma palavra. Chegamos lá. O restaurante estava vazio. Ele não precisava ter tido tanto medo das reservas. Poderíamos chegar naquele restaurante uma hora depois do que tínhamos marcado que ainda teriam lugares. Aquele lugar tinha seus dias contados. Ele estava bem arrumado, mas tinha cara de filial que não deu certo, e os garçons tinham cara de que teriam que procurar outro emprego logo, logo.A comida era apimentada de mais. O que fez meus olhos lacrimejarem, borrando meu rímel. Tentei concertar. Sem muito sucesso.Como sempre, ficamos conversando sobre o nosso trabalho. Sobre minha mãe, meu pai e o quanto eles odiavam ele. Ele não se conformava. Eu acho que estava começando a entender. Definitivamente, não era mais como antes.“Por que não botou o vestido que eu te dei? Você deveria gostar daquele tipo de roupa, é mais chique.”“Eu achei ele lindo, mas...” Com certeza soou com ar de mentira, e era. “... ele estava um pouco amassado, não tinha tempo de passá-lo.”“Da próxima vez, organize-se antes.”“Talvez se você tivesse dito que demoraria quarenta minutos, eu saberia que dava tempo de passar o vestido.”“Eu não tenho culpa se o transito está uma droga!”“Tudo bem.” Eu tinha prometido ter mais paciência. Paciência quando ele tenta escolher as coisas que eu devo gostar, paciência quando ele me diz pra ser do jeito que eu já sou. O desorganizado é ele, e ainda quer dar aula.“Mas você está bonita com esse vestido, e essa maquiagem, bem... diferente.” Ele tentou, mas não conseguiu. Ele podia ter deixado a impressão de que tinha me achado linda, como tinha dito no carro, quando queria ir embora rápido dali, querendo me dar segurança dizendo que eu não precisava da bolsa para ir embora. Mas eu não queria a bolsa por estética. Minha bolsa, minha independência. Levo o que quero lá dentro, e o que eu não quero, também. Ele pensa que eu só me preocupo com isso e com o que ele vai achar de mim. Eu pensava nisso tudo enquanto deixava o coitado, ou não, esperando.“Mariana?”“Ah, obrigada, você também, está muito bonito com essa camisa azul.” Ele realmente estava bonito. Só bonito, nada de mais. A beleza dele tinha me atraído no inicio, mas agora eu sabia de todas as coisas que faziam a beleza dele quase desaparecer.Depois de passadas duas horas, conversando sobre as mesmas coisas de sempre, fomos embora.“Mariana, eu te amo.” Respondi com um beijo rápido. Foi a única coisa que consegui fazer. Então, fechei a porta do carro, e ele saiu. Fiquei me sentindo culpada por ter sido grossa. E agora eu tinha certeza que essa seria a única coisa que eu conseguiria ser dali pra frente.Eu me arrumei e me enfeitei para o início do fim. A cada dia que nos víamos, era mais um para chegar ao final. Não dava mais. Durante todo esse tempo, ele não mudou nada desde o inicio. Ele foi o mesmo cara de quando eu conheci e me encantei. Primeira semana, primeiro mês, primeiros meses. Conheci-o suficiente nesse tempo, para saber que não ficaria encantada por toda a minha vida. Como um batom recém passado: vermelho, forte, intenso. Um dia desbotou.

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