domingo, 18 de dezembro de 2011

Eu quis que todos os parágrafos começassem assim

Aurora entrou no quarto chorando porque sentia um vazio pesado demais. Essas são as contradições da vida: algumas coisas vazias pesam. Desligou o telefone porque do telefone não saía nada de especial, do telefone saem vozes duras como pedra. Voz macia é a voz em que se vê o gogó mexendo na garganta. Aurora estava chorando para tentar preencher o vazio com as lágrimas, mas tinha uma escolha a fazer: continha as lágrimas dentro dela para preencher o vazio de dentro, ou jogava as lágrimas para fora para preencher o vazio de fora?
Aurora já não sabia mais ser ela mesma. Olhava para os lados, lia livros, visitava amigos que não eram os dela. Visitava amigos dos outros. E os dela, onde estavam? Aurora já não conseguia mais reconhecer seus cachos morenos no espelho! Aurora agora tinha o cabelo rosa. Aurora já não tinha mais as unhas curtas, quase como o Zé do Caixão, ela tinha as unhas compridas demais para alguém que era muito higiênica!
Aurora continuava chorando porque parecia que o vazio de fora roubava tudo que o vazio de dentro tinha... Ela ia continuar sozinha, pois nem as lágrimas não a aguentavam mais! Fazia tempo que não sorria, era quase sempre que desistia, era todo o dia que corria contra o tempo. Porque Aurora ainda tinha alguns afazeres, trabalhava pelas tardes e quase sempre se atrasava. Pelo menos Aurora aprendeu a correr como ninguém. E corria, no entanto, não tinha os sapatos adequados. Quando de salto alto, corria na rua de pé descalço. Era a maior aventura que atualmente poderia ter!
Aurora numa dessas, pisou numa pedra, lembrou-se da voz dura do telefone! Decidiu voltar pra casa de salto mesmo. Entrou no quarto e ligou a porcaria do telefone. Ligou porque já não aguentava mais ouvir voz nenhuma: ela queria mesmo, agora, até a voz dura. Foda-se a voz macia, disse ela. Foda-se esse gogó gigante que eu já nem vejo mais. Eu vou ligar. Vou ligar de vez o telefone, afirmou ela, para poder dizer um adeus com a voz mais grossa, dura e firme que Aurora já teve.
Aurora ligou, finalmente, o telefone. E não para esperar que saíssem coisas especiais lá de dentro. Ela ligou para expulsar uma coisa muito especial. Um adeus que não é especial, não é adeus, é um tchau. Ela tremeu ao discar os números, ela suou ao ouvir o barulho da chamada, ela quase chorou quando a voz rígida atravessou como chuva de granizo. Ela engoliu a porcaria da chuva toda e disse Olá. Um olá quase tremulo, mas que logo se recupera.
Aurora conseguiu dizer adeus e então não precisou mais deixar o telefone desligado. Aurora conseguiu dizer adeus e por isso pode dizer muitos mais olás. Aurora cortou as unhas, tirou a cor brega e descascada do esmalte. Aurora pôs novamente seus tênis e parou de andar de salto. Aurora reencontrou os seus amigos, e percebeu que aqueles outros não eram mesmo pessoas que gostavam de poesia e música boa.
Aurora foi de novo Aurora. Aurora, de cabelos cacheados, não mais vazia, mas nem muito cheia! Porque não estar completamente cheio faz parte da vida e estar completamente cheio é impossível. Estar vazio acontece, o problema é quando dura muito tempo.

Um comentário:

As Bufa disse...

aurora clara? Legal o texto!