sábado, 17 de julho de 2010

O meu próprio gelo

Eu entrei no meu quarto e era frio. Não só o frio da chuva, não só o frio das vidraças abertas. Era o frio de uma roupa suja jogada no chão, e pior, de uma roupa limpa jogada ali também. Era o frio de uma janela em que eram abertas, às vezes, as vidraças, mas não as venezianas. Mas não era sempre assim, nunca foi assim. De uns tempos pra cá eu não conseguia mais lutar contra o frio que deixava o quarto cada vez mais escuro, mesmo com a luz do abajur e a luz do teto.
O frio também se dava graças às fotos que já não poderiam mais ser admiradas e lembradas. As fotos que traziam traição, pena, tristeza, dor e saudade. Mas uma saudade ruim de coisa que não volta, nem pode voltar. Não uma saudade de coisa que vai se matando com o tempo. Saudade de coisa que mata a gente com o tempo.
A cama também, com uma cara de lugar vazio que deixou saudade. Não porque era muito espaçosa, pois não era. Era porque ela tem espaço de pouco, mas que já coube tanto amor e tanto espaço no meio de dois corpos encolhidos naquele metro de largura.
O espelho talvez deixasse entrar um gelado mais doído e agudo do que o das frestas das vidraças, um gelado que me mostrava e que mostrava a mim o que eu sabia que era errado. Eu sabia que era errado jogar a roupa limpa no chão, eu sabia que era errado cultivar fotos de pessoas amargas como um chimarrão quente que eu nunca tive costume de tomar, apesar de ver todos tomando. Errado também era cultivar copos e copos de água que faltavam na cozinha e que entulhavam meu bidê. Eu sabia que no fundo daqueles copos d’água que não eram tão fundos, eu podia encontrar um resto não de água comum, mas de noites em claro regadas à copos de água que tentavam saciar a sede. E assim foi que eu descobri que a água que tem melhor gosto é a água de banheiro, sem gelo, nada de mineral e bastante simples e barata. Aquela água que preenchia um copo, daqueles de requeijão, em uma noite cheia de sal, cheia de sede. A melhor água é aquela água que a gente põe ao lado no bidê e fica tranqüilo ao pensar que não vai precisar levantar-se caso sentir sede. Água de banheiro: simples, pura e inteira.
No meu quarto eu encontrava várias coisas que refletiam várias partes da minha vida que, ainda curta, tivera momentos bastante emocionantes. Pobre de quem subestima a vida de um jovem, pobre de quem acha que viver bem é viver muito, viver direito é sobreviver até ser velho. Pobre de quem acha que a vida tem que ser gasta até o final, mas que pra isso não se pode gastá-la muito.
Então, no meu quarto, eu encontrava pedaços de papel com pedaços ou inteiros de Quintana. Eu encontrava restos de idéias que eu tinha tido no banho, mas que a água acabou por levá-las pelo ralo. Idéias que a gente repete durante o banho inteiro para não esquecer. No fim, era freqüente que eu comesse algumas palavras ao escrever.
Presentes de pessoas que não me dariam mais, e cartas de pessoas que não me escreveriam mais e também não escreveram. Fotos de pessoas que hoje já não podem mais tirar fotos e também não podem mais ser fotografadas. Fotos de sorrisos que hoje choram, mas como se faz chorar um sorriso? Fotos de sorrisos que não existem mais, e que, aos poucos, tornaram-se lágrimas.
Um travesseiro que afunda a cabeça até quase não mais fazer efeito. Um travesseiro que deixa o peso não só daquela imensa caixa que abriga um cérebro, mas de uma bola, redonda, grande e orelhuda, cheia de idéias, algumas frustradas, cair na mesma linha do colchão. Um travesseiro mole, para apoiar a cabeça que, durante o dia, só escuta, enxerga e fala coisas duras.
De vez em quando alguém entra lá. Contra minha vontade porque dar satisfação sobre quatro paredes e um banheiro, não é lá minha coisa preferida a se fazer. Muito menos dar satisfação sobre a veneziana não aberta, sobre a foto que eu não deveria admitir estar estampada em meu espelho e sobre presentes que deveriam estar queimados.
Não tenho santo, santa nem cruz alguma pendurada na minha cama. Nem sei se santo se pendura, mas, eu não tenho algum nem apoiado naquela estante cheia de retratos, cheia de bichos, de copos, de pedras e de pó. Tudo, mas nem um santo. Não porque eu não respeite santos, não porque eu ame o diabo e não porque eu não rezo. Realmente, eu não rezo. Realmente, eu me interesso muito mais pelo vermelho infernal e sanguíneo do que pelo azul bebê que, em minha cabeça, colore Deus. Mas e quem quer saber de minha cabeça? Minha cabeça pesa no travesseiro de pena de ganso que não agüenta, meus olhos vibram muito mais ao ver uma cortina de teatro de veludo vermelha do que ao ver um berço cor de azul bebê. Meus olhos vêem coisas que ninguém vê, mas que também talvez não existam. Assim como minha cabeça pensa o que existe, mas que ninguém algum dia ousou inventar. Porque tudo que é inventado já existia. Só não era reconhecido, não era mostrado, e nem descoberto. O amor já existia e ninguém o inventou. Em minha cabeça sempre correu o pensamento de dúvida: o mesmo amor de quando o descobriram, seria o mesmo amor de agora?
Tudo isso porque meu quarto é frio. Tudo isso porque é inverno e tudo isso porque eu li ontem. Eu queria ler mais, eu queria ver mais e mostrar mais. Mas é difícil saber que para começar a fazer algo, é preciso assumir que nunca se fez.
O meu quarto é frio, minhas mãos são frias e quando me deito meu pé é gelado, mas agora está dormente. Às vezes eu me sinto um iceberg, mas que nem encostou no Titanic. Um iceberg perdido, sozinho e fixado no fundo do mar gelado. Um mar gelado que vai entrando pela porta e venezianas do meu quarto. Eu tenho medo de ser o próprio gelo do qual eu fujo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Texto muito bom! a descriçao é tao intensa que me senti no seu lugar.
nao me segurei e no segundo e terceiro paragrafos chorei. parabens, são todos muito bons
- anonimo do forms