Ele tinha vida, como de quem não cochilava. Os olhos eram cinzas, e as olheiras bem azuis. O rosto corado, mas a boca branca. Orelhas que viam o que os olhos jamais tinham ouvido.
Ele não tinha vida como a de quem cochilava. Ele tinha preso em si todas as cores. Mas em seus olhos as neutras. O mundo dele era preto, cinza. E muito raramente, quando queria chorar, era branco.
O véu de sua esposa tinha cinzas penduradas, entrelaçadas no meio daquele tule furado, daquele pano que mais tarde serviu para o mosquiteiro dos filhos. Os gêmeos. Nem as suas cores ele via. A menina branca, branca, branca e o menino com escuros cabelos cacheados. Os olhos doces e verdes da esposa jamais pudera ver. Ele tinha é se apaixonado pelos cílios, curvos e bem pretos. Piscavam devagar e com uma calma de acalmar qualquer um, qualquer um que não dormia há anos. Era o contrário de seus olhos que piscavam atormentados, elétricos e ligados, olhos que não fechavam, olhos que nunca viam o escuro do sono.
Ele não dormia porque não podia. Não queria acreditar que o tempo era gasto em tantas horas de sono. Ele as gastava passando um café chumbo, que o mantinha acordado. Às vezes, egoísta, acordava a esposa também. Chamava-a para conversar papos que, com sorte, eram estampados de um poá preto e branco, mas que nunca fugia do neutro.
Ela via pouco, mas ouvia muito. Ouvia as palavras ásperas e escuras como carvão, mas nunca deixara de escutar o marido. Via que seus olhos eram azuis da cor de caneta, aquela caneta que mancha a ponta dos dedos ao escrever. Um azul petróleo quase se rendendo à vida negra daquele homem. Mas ela ouvia. Mesmo assim ouvia todas as suas histórias de pescador que nunca pescou, mas que levava jeito para contar histórias longas. Ele era só um escritor.
Só? Ela não entendia. O marido passava parte das horas escrevendo textos negros em folhas brancas. Textos retos, que talvez não merecessem ser lidos. Talvez escutados, naquelas longas histórias. Ela via pouco, via pouco além de letras e palavras espaçadas. Mas ouvia muito.
Um dia ele caiu. Sem se machucar caiu na cama e afundou a pesada cabeça preta e branca no travesseiro. E sonhou, sonhou, sonhou. Tudo aquilo que ele nunca tinha escrito. Sonhou sonhos loucos, coloridos, intercalados com xícaras de café.
Ela chegou ao quarto. Não pôde acreditar no que via. Nem ele. Páginas e páginas de histórias que ela já havia querido ouvir, páginas brancas, histórias com cores. Histórias em que os tons de cor impediam uma linha reta. Histórias que mereciam ser lidas, ouvidas e contadas.
Ele não agüentou. Não sabia lidar com aquelas cores invadindo os seus olhos. Enfim pudera ver o quão bonita era a filha, ruiva, de olhos azuis e pele branca como neve, não como tudo. O filho, cabelos cacheados loiros e não pretos como o resto. Os olhos da mulher eram verdes e até tiravam a atenção dos cílios.
Ele não agüentou, mas também não teve coragem de se atirar daquela janela tão colorida. Então foi dormir, com esperança de não mais acordar. Dormiu, dormiu, dormiu.
E até hoje, esperam que ele acorde. Acorde e traga as histórias dos sonhos, as histórias que todo mundo quer ouvir, contar e ler. As histórias dos sonhos, tão coloridas, tão sinceras, as mais bonitas. Mas alguns não agüentam sonhar. Alguns não sabem ver.
Um comentário:
nossa, gostei muito desse ana, sério mesmo ! -paula
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